The Flying Wine Drinker: Memórias X
O Ministério da Saúde deveria alertar: “PANETONES PROVOCAM INSÔNIA”.
São, quero crer, aproximadamente quatro da manhã e é a terceira vez que desperto por sonhos (ou pesadelos).
Entendo que há restos na cozinha. Levanto e como o último pedaço (catando os farelos dentro do saco). Sim: o panetone estava ainda dentro da caixa e dentro do saco para não despertar suspeitas (de quem quer que fosse) de que ele estaria sendo comido.
E a esperança de que ele tenha sido comido antes que percebam que ele entrou em casa.
Nem preciso usar a faca!
Abro, sorrateiramente, a porta dos fundos e – qual gatuno de filme B (só que em trajes menores) -, despejo os restos mortais – caixa e saco -, na lixeira do andar. Se o porteiro não fizer delação premiada, não apenas estarei livre como poderei comprar OUTRO panetone e dizer (a quem interessar possa) que aquele panetone era o anterior: panetones e chineses são todos iguais.
Volto para a cama com um peso que, se fosse só na consciência, me deixaria tranquilo. Mas penso também na balança.
Deito e não consigo dormir imediatamente. Penso nos viciados em quaisquer coisas: bebidas, cigarros, etc. Viciados que levantam de madrugada e rondam a cidade – qual almas penadas – em busca do que quer que seja. E concluo que não sou viciado em panetones (resistindo à tendência de vestir-me e sair às ruas à procura de um novo panetone).
Um gosto de passas ao rum invade meu palato. Aperto o travesseiro angustiado: será que deveria levantar, mudar de roupa e descer? Afinal, padarias funcionam desde bem cedo. Mas constato que todas as padarias da região se transformaram em minimercados (dublês de restaurante e comércio de havaianas).
A nostalgia toma conta de mim. Envelhecer é enterrar experiências. Quantas lojas que fecham? Quantos produtos são retirados do mercado (talvez porque apenas você comprasse…)? O que aconteceu com um sundae chamado “bombom escocês” vendido na extinta Pizza Stop, na esquina da Marquês de Abrantes com a Travessa dos Tamoios? Aliás, por que acabou a própria Pizza Stop com suas maravilhosas pizzas de provolone? E por que teria acabado a própria lanchonete onde, na década de sessenta, no mesmo lugar, fui introduzido ao mundo maravilhoso dos sundaes de chocolate?
Penso no ciclo da vida. No nascimento e na morte. O que, afinal, está acontecendo com os chocolates com passas ao rum? Antes eram abundantes. Agora… Onde encontra-los? Será que, quando eu morrer, chegarei a um lugar onde estariam todos os Dodô, bombons escoceses e chocolates com passas ao rum? Ou – Inferno – a um lugar onde resta apenas a memória disso?
Londres. Década de 1970. Talvez 1971 ou 1972… Sentado na poltrona da sala vejo (na televisão a cores; uma raridade no Brasil de então!) um comercial entre um segmento e outro de um estranho programa que tinha me habituado a ver chamado Monty Python’s Flying Circus. O comercial era de um chocolate da Cadbury’s chamado Old Jamaica.
Lembro de um pirata estilizado (talvez tendo como cenário um navio) com um papagaio no ombro. Lembro, ainda, do sonoro jingle:
— Old Jamaica, flavour of rhum…
que, ao final, era saudado alegremente pelo palrear (se é assim que se diz) do papagaio: “Queeerk!”
Old Jamaica custava 10 pence e gastava quase toda minha “semanada” com ele. O chocolate, suavemente perfumado, carregava lembranças de algo que (pouco mais tarde) aprendi ser “álcool” e as passas – ou, diriam os ingleses sultanas – banhadas em rum, eram um deleite para meu inexperiente palato.
Esse chocolate perdeu-se no passado. Foi-se, diria o Andróide do Blade Runner original, como lágrimas em dias de chuva…
Reminiscências… Que se danem as madeleines! Passei anos à la recherche du chocolat perdu. Em algum momento pareceu que minhas preces tinham sido atendidas: em um Sainsbury’s da Cromwell Road encontrei algo chamado de Bournville Old Jamaica. Embalagem diferente mas… quem sabe?
Enfim… O chocolate estava lá. As passas estavam lá. Mas não era a mesma coisa. Afinal, quem fazia as madeleines de Proust? No meu caso, o presente mostrou-se um espelho embaçado das memórias do passado: meu chocolate da infância – quem sabe onde foi parar? – não me transportou a lugar nenhum! Talvez por isso eu não seja Proust…
Não encontro posição na cama. Ligo a televisão: anúncios de produtos Tabajara no History Channel. Em um arroubo de parvoíce imagino que panetones deveriam vir com bulas. As ideias me parecem confusas.
Já em regime de terror, me vem à mente a lenda do Holandês Voador – Der Vliegende Holländer -, navio que fora amaldiçoado e condenado a vagar pelos mares indefinidamente até que sabe-se lá o quê acontecesse…
Senti-me condenado a vagar pelos supermercados e websites até encontrar algum fóssil do Old Jamaica da minha infância. O que não resolveria meu drama atual: o que está acontecendo com os chocolates com passas ao rum? Por que estão desaparecendo? De Sherlock Holmes a Philip Marlowe não consigo imaginar quem me ajudasse a resolver esta charada.
O Holandês Voador.
Não consigo dormir. Não consigo ficar deitado. (Mas também não penso em levantar) Não há nada (interessante) para ver na televisão.
Em um estado semi-consciente lembro-me de Ulysses e, meio que sonhando, imagino sereias em forma de panetone chamando-me pelo nome em uma melodia hipnótica. Talvez eu devesse ter colocado cera no ouvido antes de deitar.
O Holandês Voador… Os Argonautas… Ulysses e os panetones. O sonho virou um delírio.
Sobressaltado, levanto da cama. Visto a roupa e vou, pela madrugada, à procura de um outro panetone.
E agradeço aos céus o fato de não ser viciado.