The Flying Wine Drinker: Memórias VI
Vestido com o uniforme cinza e verde da St. Davids’ School (extinta escola do sul de Londres) diminuía o passo – quase parando e com olhos muito abertos – para olhar para dentro do PUB e esperar que alguém, fortuitamente, abrisse a porta para que eu pudesse, de modo quase furtivo, vislumbrar o interior.
Londres, 05 de novembro de 2013.
Mais de quarenta anos passaram e, hoje, acomodado em frente a uma das mesas do Stanhope Arms, as posições se inverteram: sentado, olho para fora (sempre que a porta se abre) sonhando que algum artefato da ficção – quem sabe um aleph? -me permita rever o menininho que o tempo levou e que resgate a vida que passou tão rápido como o trailer de um filme que nunca vi…
Com uma pinta de Aspall Cyder diante de mim – justificada pela ausência da Strongbow exumada das memórias dos anúncios de televisão que o menininho assistia -, folheio a revista Decanter do mês de Novembro enquanto espero um prato de fish & chips que atende pelo nome pitoresco de “The Cod Father”.
O artigo de fundo alude redundantemente, e com certa dose de humor “britânico”, ao nome da revista: “To decant or not?” Promete abordar o tema de maneira definitiva por meio de um teste. Nostálgico (e sem ter nada melhor para fazer), sigo lendo.
O ponto central do artigo é que muito pouco se sabe sobre a “arte” de decantar vinhos. Fora o consenso de que isso deve ser feito quando se observam resíduos no fundo da garrafa, tudo é um mistério.
Que vinhos devem ser decantados? Apenas os tintos? Portos? E os brancos? E o que dizer dos champagnes? Mais: quanto tempo um vinho deve passar decantando? Aerar demais seria prejudicial? E de menos? Seria o processo de decantação o equivalente à passagem de alguns anos de guarda (isto é, um vinho decantado por algum tempo “envelhece” de maneira saudável?)
A revista resolveu enfrentar estes – entre outros – problemas da seguinte maneira: escolheu três VIP’s (em “enologuês” Very Important Palates) e desenvolveu uma metodologia. Assim, Gérard Basset, Stephen Brook e Steven Spurrier – lendas vivas em seus próprios terrenos -, escolheram duas apelações (Pauillac e Napa Valley) e três safras (2006, 2000 e 1996). A ideia seria confrontar os seis vinhos – do ponto de vista dos tempos de decantação – em uma degustação sem ser às cegas.
Assim, um vinho do “Novo Mundo” com uma safra madura, uma “quase pronta” e uma jovem demais seria comparado com um vinho do “Velho Mundo” em idênticas condições. Quatro garrafas seriam servidas – cronometradamente – logo depois de abertas; com uma hora; com duas horas; e com quatro horas de decantação respectivamente. E os VIP’s dariam suas opiniões.
[Em edições futuras (de Dezembro e Janeiro) essa experiência seria repetida com vinhos do Porto (um clássico, um single quinta e um vintage) e, posteriormente, um duelo entre um Syrah Côtes du Rhone com um Shiraz do Vale de Barossa. Mas não tratarei disso aqui…]
Quais foram as conclusões? Houve unanimidade? Claro que não! Mas foram levantados alguns pontos (dos quais transcreverei os melhores momentos):
- Aerar um pouco é melhor do que não aerar;
- O ato de decantar (ou de não decantar) torna os vinhos diferentes. Se para melhor ou para pior é uma questão de gosto…
- Abrir um vinho duas horas antes do consumo não é a mesma coisa do que decanta-lo uma hora antes;
- Decantar os vinhos por uma hora geralmente é bom;
- Decantar os vinhos por duas horas funciona melhor com vinhos mais jovens;
- Decantar por períodos mais longos é perigoso: quanto mais evoluído o vinho, maior o risco de oxidação no decanter;
- Vinhos muito duros podem abrir durante o processo de decantação;
- (Mas não espere que vinhos jovens e imaturos amadureçam e envelheçam por meio da decantação); e, finalmente,
- Um vinho morto não pode ser ressuscitado.
E, caso algum vinho ressuscitasse… Bem… Provavelmente teríamos uma nova religião…
* * *
Fecho a revista e olho pensativamente para minha cidra. Dentro de mim, agradeço a Deus por não conhecer cidras o suficiente para saber (ou não) se existem “cidras de guarda” e como se deveria toma-las.
Deixo meu pensamento vagar ainda mais. Estou nostálgico: não se trata apenas de saber se um vinho deve ser tomado decantado ou não. Tenho diante de mim a angústia de saber quando toma-los! Afinal: quando um 2006, 2000 ou 1996 estaria “no auge” se cada vinho – e até mesmo cada garrafa! -, são tão… individuais?
Lembro então de uma digressão de Matt Kramer em seu brilhante Making Sense of Wine:
“Não existe um momento único para um vinho atingir o seu auge. Há um nascimento, uma adolescência, uma maturidade e, eventualmente, uma morte. Mas, ao longo desta linha do tempo – bem como ao longo de nossa própria vida -, será que existe um e somente um momento em que se possa dizer que o vinho está em seu auge absoluto? Eu, por exemplo, não gostaria de crer que estarei desprovido de qualidades desejáveis aos setenta ou, pensando pelo mesmo viés, que não tivesse alguns predicados aos dezessete. O meu auge foi (ou será), misericordiosamente, na melhor das hipóteses, determinado pelo gosto de quem julga”.
Lembro-me – ou penso lembrar – do que Kramer diz adiante: se você não puder comprar, digamos… seis ou doze garrafas de um mesmo vinho para acompanha-lo ao longo do tempo, melhor não compra-lo! Em outras palavras, não se trata de uma bebida. Trata-se de uma relação!
Esboço um sorriso meio triste diante desta conclusão. Acho que estou ficando realmente maluco; que essa coisa de “vinho” está literalmente me “subindo à cabeça”… Por um momento (ainda que rápido) me dou conta do quão feliz eu era quando era pequeno demais para entrar em um PUB e todo o mistério que isso gerava. O manto da proibição abria uma tela sobre a qual a imaginação projetava universos inenarráveis. Hoje o mundo me desafia com menos “mistérios” (como o de PUB’s proibidos e toda a aura da idade adulta). Porém, com muito mais dúvidas…
Cruzo o garfo e a faca e tomo o último gole de minha cidra. A porta do PUB se abre e acredito ver, de relance, um menino com um uniforme cinza e verde passando em frente. Bem devagar. Tentando olhar para dentro. Levanto rápido e corro para a porta. Ao abri-la, olho para a esquerda e para a direita e não vejo nada. Aperto os olhos e tento ver o que não está (mais) lá (ou aquilo que jamais esteve). O menininho se foi…
Dou um passo à frente e fecho a porta do PUB. Piso na calçada da Gloucester Road e sigo meu destino incerto. A chuva fina que cai sobre Londres molha o meu rosto e se confunde com minhas lágrimas.