The Flying Wine Drinker: Memórias IV
As rodinhas não funcionam no chão de cascalho: tenho que levantar as malas e caminhar os cem metros que me separam do chalé. Paro na porta, suado, e olho ao redor. O silêncio é apenas cortado por um carro que passa pela estrada. O local não chega a ser “bonito”. De repente, sinto-me cansado e só…
Valle de Uco, março de 2010.
Abro a porta e procuro o interruptor. Não funciona (ou a lâmpada está queimada). Mas a luz do dia ainda ilumina o suficiente para achar outro interruptor que — agora, sim! — acende uma lâmpada. Olho em volta. O chalé é rústico e um pouco empoeirado. Não necessariamente sujo. Mas chama-lo de “limpo” seria demais. Atravesso a saleta (que se confunde com a cozinha) e me deparo com três portas de quartos. Duas, trancadas. Volto para a cozinha e, com sede, abro a geladeira. Vazia. Abro os armários. Também vazios (não fosse por um par de aranhas). Na penumbra, suspiro desolado.
A constatação da falta de água detona em mim a sede de trinta tuaregues.
Procuro um telefone para chamar a Recepção e quase imediatamente caio na real: não há Recepção. Pelo menos não naquele momento… Junto minhas forças e saio, em busca de auxílio. Logo do lado de fora da porta ouço um zumbido. Sigo o ruído com os olhos e vejo Cérbero. O porteiro (guardião, recepcionista, front desk clerk e gerente do estabelecimento) transforma-se, agora, em jardineiro [!?]: vejo-o manobrando um cortador de grama motorizado com trejeitos que lembram os de um piloto de Fórmula 1. No rosto, uma expressão tensa, sorridente e embevecida — como se estivesse em uma pista de carros bate-bate em um parque de diversões.
Com a certeza de que estou estragando sua diversão, faço sinal para que pare.
— Por favor… Onde posso conseguir água? — pergunto.
— (…)
— Á-G-U-A. Para B-E-B-E-R…
— (…)
— Á-G-U-A! — tento fazer uma espécie de mímica onde derramo um cantil cheio de água pela boca (mas que deve — penso hoje —, ter parecido a ele como um ataque epilético). Com os olhos arregalados, ele responde:
— Na torneira. A cabana tem torneira! — ele retruca, olhando para mim como se eu fosse uma espécie de débil mental. — Abra a torneira e beba! Qual o problema?
— Mas… Eu quero água mineral! — disse lembrando-me que a nascente da Eco de los Andes fica a menos de cinco quilômetros dali.
Cérbero desliga o motor do cortador de grama. Entra (provavelmente) em modo “raciocínio”. Passa o tempo. Entendo, já por experiência, que terei que esperar.
— Tem um quiosque do outro lado da rua (…) — finalmente diz.
— Obrigado! — agradeço e, voltando as costas para ele, começo a andar na direção desse quiosque.
— (…) Mas está fechado. — Cérbero termina a frase.
Paro e olho para ele intensamente. Penso nas estatísticas de crimes no interior da Argentina. Se o quiosque está fechado não tem, evidentemente, água para vender! Antropólogo treinado, aguardo uma solução “etnográfica”… Tipo… “Bata na porta e diga a Maria de las Mercedes que Cérbero… etc.” Mas essa solução não vem. Na verdade, nada vem… Nem uma palavra…
— O que faço, então!? — quase imploro.
— (…)
— Onde posso comprar água mineral? — insisto.
— Tem a Posada del Jamon do outro lado da estrada (…) — o rosto de Cérbero se ilumina com um sorriso.
“Graças a Deus!”, penso. E dou meia volta…
— (…) Mas está fechada…
Contenho o grito. Fico vermelho. Acho até que começo a tremer. (Não que Cérbero tenha percebido nada). Ele apenas olha pra mim.
— Por favor… — suspiro contando até dez — Qual a minha melhor chance de conseguir ÁGUA em um domingo à tarde aqui por perto?
— (…)
— Por favor! — suplico.
— (…)
— Por favor!
— Em Vista Flores … — retrucou (em um tom que quase implicava no elipse da palavra “IMBECIL”).
— E onde fica Vista Flores? É minha primeira vez aqui…
— Pertinho. Três quilômetros praquele lado. — aponta com o beiço.
Sangue. Já quero beber sangue. Não tenho condução e não ouso perguntar o que teria que fazer para conseguir um taxi. Teria que ir andando. Não é longe. Mas estou cansado… E SEI, dentro de mim, que chegarei a Vista Flores e que nada estará aberto. Tenho vontade de chorar; de gritar. Se estivesse me afogando, minha vida teria passado diante de mim. Com sede — naquele deserto — a figura de Cérbero (vestido de verde e com um boné vermelho) se distorce em minha mente e se transforma — como em uma miragem — em uma garrafa gigante de San Pellegrino.