The Flying Wine Drinker: Memórias III
Quatro da tarde. O remis desacelera, cruza o acostamento da Ruta 92 e encosta perto da guarita que protege a entrada da Pousada. Saltamos. O motorista e eu. O local é simpático: um aglomerado de casinhas rústicas um pouco isoladas umas das outras. Olho em volta e vejo apenas um segurança no portão. Havíamos chegado! Mas… Como proceder?
Valle de Uco, março de 2010.
– Tenho reserva para a noite de hoje… –, dirijo-me ao segurança.
– … ?
– Re-cerva…[falo pausadamente estalando o “r” e amolecendo o “s”] Para hoje… –, olho para o motorista um pouco tentando entender se havia algum problema com meu Espanhol.
– … ?
– El señor tiene reserva para hoy… – quase ecoa o motorista, logo em seguida.
– … ?
O guarda na guarita, com os olhos arredondados, nos olha como se estivesse avaliando espécimes de alguma exibição teratológica. Durante um instante, sinto como se minha pele fosse verde, como se meus olhos fossem do tamanho de bolas de bilhar protuberantes em uma cabeça ovoide e como se um nariz de Pinocchio me brotasse do meio da testa, apontando para os céus como um bule de design impossível. (Por via das dúvidas, também confiro as solas de meus sapatos para ter certeza de que não tinha pisado em nada).
– Aqui é a Posada Cochi Lihue?
– Por favor, donde es la recepción?
– … ?
Impossível precisar quanto tempo já se teria passado. Estávamos como que em um universo paralelo: sem tempo, sem referências… Apenas um barulho distante (como o atrito de engrenagens)… talvez o som do cérebro do porteiro, finalmente despertando de uma indefinida letargia.
– Síííí… – profere, afinal, com admirável poder de síntese ao mesmo tempo respondendo todas as perguntas e, igualmente, colocando-se à nossa disposição.
– Boa tarde, gostaria de fazer meu check in. Tenho reserva para hoje…
– Su… nombre…? , balbucia com algum esforço…
Respiro fundo. E agora? De que maneira poderei revelar a esse Cérbero pré-colombiano que meu nome é… Wan–dyr!? Olho para Miguel – o motorista – em desespero. Ele suspira. Mas não se não se faz de rogado:
– El señor se llama Ferr-rréi-rra, – disse caprichando nos “erres”.
– Si-quei-ra, en verdad –, corrijo agradecido acenando com meu passaporte (na esperança de que Cérbero, de alguma maneira, o apanhasse. (Saberia ler?)
E outra vez, deslizamos para uma zona indefinida do espaço-tempo.
* * *
Mas, afinal? Por que estava eu aborrecido? Vim para Mendoza plantar uvas e para fazer vinhos. Teria que esperar três anos para que as uvas de meu vinhedo dessem a primeira colheita. Teria que esperar que esta colheita vinificada ficasse pelo menos mais um ou dois anos em barrica e ainda outro ano em garrafa descansando. Deveria estar pronto para esperar que este vinho ainda amadurecesse durante uns outros três anos antes que atingisse seu auge. Em última análise, teria que esperar pelo menos uns seis anos antes que pudesse mostrar ao mundo o resultado de meu trabalho. Talvez mais do que isso.
Colocado desta maneira, o problema resvala na questão da finitude humana. Beber vinhos é uma coisa. Fazê-los nos remete a uma dimensão totalmente diferente. Por mais que o sangue me estivesse subindo à cabeça e que estivesse experimentando uma vontade descontrolada de agarrar “Cérbero” pelo pescoço e sacudi-lo até que percebesse que ele estava no século XXI, vivendo em uma sociedade pós-industrial e em um mundo globalizado tive que me controlar.
Também tive que lutar contra instintos assassinos de cravar-lhe um saca-rolhas entre os olhos e de extrair aquele monte de algodão que deveria estar ali como uma impostura de cérebro.
De repente, o milagre aconteceu: Cérbero traz para perto de si um caderno em farrapos que estava à sua frente e… pega um lápis.
* * *
Quatro horas da tarde, em uma guarita na recepção da Pousada Cochi Lihue, a dois quilômetros de Vista Flores, Valle de Uco, Mendoza, o tempo parou.
Outra vez o barulho de engrenagens… Talvez mesmo um esgar… Uma dor… E uma curiosa metamorfose: Cérbero transforma-se em um front desk clerk! Treinado na KGB ou na Stasi.
– 200 pesos, por favor.
Excelente, pensei. Então tenho uma reserva, afinal:
– Posso pagar com cartão?
– … ?
Temendo outra pane, rapidamente tirei PA$ 200,00 da carteira e os coloquei sobre o balcão da guarita. Cérbero pegou as desgastadas notas de 100 e fitou-as detalhadamente. Frente. Verso. De cabeça pra baixo. De perto. Afastando. Girando, como se fossem caleidoscópios. Abanando-as como se as fosse secar (ou como se fosse um leque). Julio Argentino Roca (na efígie) e seu tropel (no verso) já haviam perdido toda a cerimônia: enquanto esperavam ser aceitos, os cavaleiros desmontaram de seus cavalos e acocoraram-se para tomar um mate (que ainda iriam preparar). O próprio Julio, em algum momento, pareceu perder a paciência e falar: “Che, ¿Que pasa?”
Cérbero, lentamente, aponta o lápis. Então abre o caderno velho. Folheia. Acaricia algumas páginas. Procura, entre garatujas, um espaço em branco como um funcionário da alfândega buscaria um espaço em um passaporte muito viajado. E começa a perguntar:
– Sozinho?
– Sim.
– Idade?
– 50.
– Tem filhos?
– Isso é para a ficha?
– …
– OK. Não. Não tenho filhos.
– Casado?
– Escuta… Todas essas perguntas são necessárias?
– Profissão? – prossegue sem que eu saiba que estado civil me fora outorgado.
– Professor.
– Que ensina?
– … – suspiro, temendo ter que dormir na portaria: afinal, o que é que eu “ensino”? Ele para e me olha… Mais uma vez, Chronos prende a respiração. Mas ele parece ponderar os prós e os contras de prosseguir nesta linha de investigação e apenas continua burocraticamente:
– Endereço?
Disse meu endereço e ele me olhou como se estivesse falando Na’vi ou Klingon:
– Quer que eu escreva? – ofereci.
– Não. Acabou o espaço. – finalizou ele, mostrando-me a folha do caderno cheia de símbolos que talvez evocassem línguas indígenas esquecidas. Talvez um biógrafo viesse conferir isso, algum dia, e encontrasse algum sentido oculto. Talvez alguém no futuro resgatasse essas folhas e achasse que se tratava de outro Manuscrito de Voynich…
Então ele se moveu. Se Parmênides e Zenon o tivessem conhecido, ter-lhe-iam abraçado com lágrimas nos olhos, pois cada um de seus movimentos [!?] parecia um tratado de filosofia eleática.
– A cabana é aquela, – apontou.
Penso nos tropeiros da nota de cem pesos. Penso na sofrida travessia de San Martín pelos Andes. Respiro fundo e começo a arrastar minha bagagem pelo chão de cascalho enquanto escuto Miguel (e o remis) se afastando.
Fazer vinhos talvez seja uma atividade relacionada com uma paciência que não sei se jamais tive.
Se eu viver, verei.