The Flying Wine Drinker: Memórias IX
Quando o bife chegou na mesa parecia que estava à beira de um ataque de nervos. Tanto que fiquei com medo de lhe mostrar a faca. Olhei para o garçom e arrisquei:
— Você vai trazer o molho de Rivotril?
Não ficou claro se o garçom entendeu a provocação. Apenas virou as costas e se foi. Então contei o número de batatas fritas: sete. Alface murcha e tomates anêmicos.
Dentro de mim, tomei uma decisão: “Não venho mais aqui. ”
Volta o garçom:
— Mas o senhor não viu no cardápio que o molho era de pimenta? — desculpou-se.
Definitivamente, não entendeu. Talvez eu devesse ter sido menos sutil.
— Perdão… — contemporizei — Tinha me esquecido…
Hamlet, então, sentou-se a meu lado: devolver ou não devolver? (Independente de mim, não consigo deixar de sorrir diante do trocadilho infame que me veio à mente: “To beef or not to beef …?” E — deixando de lados as (belissimas) traduções do Machado ou do Millôr — continuo com o Bardo: Que é mais nobre para o espírito? Submeter-me aos engulhos e indigestão deste prato ultrajante? Ou pegar em armas (no caso, garfo e faca) contra um mar de desleixo e, ao final, comer (e pagar, resignado, a conta)? Ir para casa e dormir. Só isso…
Decido — não pela primeira ou segunda vez —, comer “aquilo” e deixar de ir ao restaurante. Dou-me conta de que se trata de uma atitude tipicamente brasileira: não reclamar. E também me dou conta de que se trata desta minha velha discussão sobre “fidelidade”. Por que continuo indo a um lugar cujo serviço não me satisfaz (quando há alternativas)?
Perchance to dream. Talvez sonhar…
Por volta de 2005 — quem sabe como “escape” de uma rotina pesada de trabalho? — passei a frequentar um espaço no segundo piso do Shopping da Gávea. Esse “espaço”? Uma (simpática) loja de vinhos que ostentava apenas duas ou três mesinhas onde era possível degustar uma garrafa honesta (com o preço da loja) harmonizada com uma restrita (mas muito bem feita) oferta de sanduíches. Eram só dois ou três sanduíches (com nomes “imaginativos” tais como “pinot noir” ou “cabernet sauvignon”) ou, então, uma porção de queijo de minas com pão (ótimo!) e azeite. Mas o ponto alto era o jovem sommelier — Gilmar —, quase sempre vestido em tons claros (com sapatos marrons e cinto combinando) que, com fineza, conseguia captar aquela margem ideal de “diálogo” entre quem serve e quem é servido e, além disso, lembrar-se do seu gosto e sugerir escolhas adequadas ao seu palato e poder aquisitivo.
Nesta loja, em paz, podia tanto ler um livro como levar amigos. E tudo seria perfeito se ela não fechasse às dez e pouco e se eu não chegasse sempre depois das nove. O que me forçou a tornar-me cliente aos fins de semana (quando podia chegar mais cedo).
Mas, como diz o ditado, tudo o que é bom dura pouco e a loja fechou deixando-me como herança não apenas belas recordações como também um Château Margaux 1999 comprado com 60% de desconto. Tudo bem. A safra não é das melhores e já deveria tê-la aberto quando comprei. Mas não tive coragem… Quem sabe um dia?
O próprio Gilmar me antecipou que um dos donos da loja estava negociando associar-se a um restaurante novo que abriria no terceiro piso. O negócio não fechou mas o restaurante abriu assim mesmo com outros sócios. E eu teria ficado verdadeiramente desolado se, naquele momento, o Vino Club não tivesse aberto…
O Vino Club não apenas acenava com a possibilidade de ser um bom restaurante como também contava com uma excelente oferta de vinhos e mais: máquinas italianas Enomatic onde o cliente poderia se abastecer-se – taça na mão —, debitando em um cartão pré-pago. Sem a interferência de garçons. Belo começo!
Ainda me lembro do couvert com pães e pastas delicados. Do saboroso tortelone de vitelo (que eu geralmente harmonizava com um super toscano) e de uma key lime pie que nenhuma sílfide poderia desdenhar.
Mas o que eu falei sobre durar pouco? Em pouco tempo, os preços das doses de vinhos começaram a se aproximar dos preços das garrafas. Os demais preços começaram a subir na exata proporção em que a qualidade dos pratos começava a declinar. Um belo dia, o garçom (antigo vendedor de uma loja de vinhos que eu frequentava, no Centro) pediu — se eu pagasse em cartão — que deixasse, se possível, a gorjeta em dinheiro (porque ela não estava sendo repassada aos funcionários).
Constrangido, resolvi dar um tempo. Foi a primeira vez.
E então noticiou-se que o chef Olivier Cozan assumiria a cozinha. E que traria com ele uma fórmula que apavorava todos os donos de restaurantes cariocas (ameaçando-os de falência) e que era capaz de ressuscitar um negócio quase morto: água filtrada gratuita! Rebatizado de Ix – uma homenagem a Goscinni, a Uderzo e a nos ancêtres les gaulois bem como uma longínqua referência ao efêmero ancestral [XX] do mesmo dono —, o restaurante tomou novo fôlego sob nova direção. Lembro-me de mesas lotadas e da presença do próprio chef circulando por entre os comensais (eventualmente sentando-se à mesa de algum artista recém-saído de um dos teatros do shopping). Falava-se, no entanto, a boca miúda que o número de dias em que o chef Olivier costuma permanecer à frente de um empreendimento é quase objeto de apostas na Ladbrokes, de Londres. E que ninguém tem coragem de apostar em longas permanências suas à frente de negócios. Verdade ou não, tinha que me prevenir de uma morte anunciada e sabia que deveria aproveitar enquanto podia.
De acordo com o vaticínio, a presença do chef rareou e foi substituída por uma oferta, não apenas de água filtrada, mas de batatas fritas â vontade na escolha do entrecôte. Mas os vinhos começaram a rarear. Súbito constatei que tinha mais garrafas em casa do que o restaurante — as prateleiras cada vez mais vazias! Como os vinhos são componentes importantes de minhas refeições – e não desejando levar meus próprios vinhos e pagar a taxa de rolha —, resolvi dar um tempo.
Foi a segunda vez.
Então a lendária Silvana Bianchi assumiu o restaurante (trazendo consigo a sommelière Marlene Souza). Meu coração se aqueceu. Mas os pratos nunca — nem no início —, chegaram aos pés dos daqueles do Quadrifoglio. Afinal — muito se disse — tratava-se de um restaurante de shopping. Limitado em seu próprio conceito. A própria carta de vinhos — apesar de substancialmente melhorada em um primeiro momento —, não chegava a ser deslumbrante. (Clientes de restaurantes de shopping não são conhecedores de vinhos e não se dispõem a pagar mais por uma garrafa mais sofisticada, é o que se diz.) Mas tinha boas ofertas e algumas boas surpresas.
Mas, por melhor que fosse o tratamento que sempre recebi — afinal, sempre que em períodos de constância, ia lá pelo menos uma vez por semana —, o serviço caiu de qualidade, os pratos começaram a perder homogeneidade e a oferta de vinhos se tornou quase uma piada. Como última tentativa, abri mão dos vinhos. Passei a tomar apenas o espumante que estava na carta… Até que o Entrecôte al borde de un ataque de nervios — que poderíamos batizar de Entrecôte Almodóvar — foi exibido, en première, no meu prato. Digo “entrecôte” apenas por licença poética. Na verdade, era um filet mignon a quatro pimentas. Aposto que, nesse dia, no máximo duas compareceram…
Não sei se Silvana e Marlene ainda estavam a bordo. Naquela noite — como em diversas outras noites —, não vi nenhum sinal de gerência…
* * *
Chamava-se Joaquim. “Seu” Joaquim era barbeiro. Seu pai fora dono de barbearias, inclusive desta, em uma galeria da rua Marquês de Abrantes, onde cortava o cabelo desde minha adolescência. Mas ele — Joaquim — em suas próprias palavras, “não tinha cabeça” e perdeu tudo… Não entendia como uma pessoa aparentemente tão ponderada não “tivera cabeça” e perdera tudo…
Com o passar dos anos, seu Joaquim “concebeu” um jeito de aparar minha barba que me agradava e, desde então, passei a frequentar a barbearia quinzenalmente. E sempre que perguntava quais os melhores dias (e horas) para ser atendido ele respondia:
— A hora que você chegou…
Como eu chegava em dias e horas diferentes — e como sempre recebia a mesma resposta —, um dia, tomei coragem de interpelá-lo. E ele, como bom Português, respondeu:
— Mas se eu digo um dia e você chega aqui e a barbearia está cheia de clientes vai me chamar de mentiroso… Não tenho como prever a chegada de clientes! — quase se exaltava.
Seu Joaquim tinha um jeito tranquilo e agradável até mesmo quando insistente. E entre as raras vezes que “insistia” em algo era para que me tornasse cliente da manicure do salão em frente; uma bela mulata. Mas não para fazer as mãos…
— Ela é muito carinhosa e não se preocupa com tempo.
Talvez fosse por aí a razão da perda da cabeça de seu Joaquim…
Pois bem. Um dia, cheguei na barbearia e seu Joaquim não estava lá. Fui comunicado pelo (também Português) seu Anacleto — igualmente octogenário e que sempre estivera lá —, que seu Joaquim falecera na semana anterior.
Fui, quero crer, a herança que seu Joaquim deixou para seu Anacleto.
Seu Anacleto sabia que eu era professor universitário. E, para puxar conversa, sempre se gabava do rigor da educação em Portugal. Inúmeras vezes — e quando digo “inúmeras” estou sendo conservador —, ele me contou de uma sabatina onde fora severamente arguido e na qual apenas ele tinha logrado êxito. Falou que toda a banca viera elogiá-lo. E que um dos professores lhe dissera que muito poucas pessoas eram capazes de responder a uma determinada pergunta (que ele resolvera a duras penas).
Era seu exame da quarta série primária. Para mim, a narrativa assemelhava-se, no mínimo, a uma banca de Mestrado! Na época em que os Mestrados eram Mestrados.
Pois bem, à medida que se foram passando os anos, as mãos de seu Anacleto ficaram menos firmes. No início, podia sentir apenas uns poucos cortes ao longo do barbear. Depois, era como se tivesse sido vigorosamente acarinhado por Freddy Krueger ou algum outro personagem de Stephen King. Um dia, cheguei em casa e ficaram assustados imaginando que me tinha acidentado. Mas insistia na minha rotina e continuei minha rotina quinzenal de visitas à barbearia.
Um dia, cheguei e seu Anacleto não estava lá. Fora dispensado aos oitenta e sete anos, após diversas queixas de clientes, poucas horas depois de minha última visita. Morreu na semana seguinte.
* * *
Já faz um par de anos que não vou ao Ix (que eu, logo no início, chamava de “9”). Hoje, quando passo em frente ao restaurante no terceiro piso do Shopping da Gávea, vejo que é comandado pelo chef Mauro Canellas. Ou, pelo menos, é isso que diz o cartaz na porta (como em uma velha crônica do Ed Mort). Só que não sou Voltaire, o rato albino que se chamava assim porque sempre voltava… Também não mencionarei as 117 baratas que dividem o “escri” com o detetive. O restaurante, volta e meia, parece estar entregue a elas. Gestão barata (outro trocadilho infame me veio à mente).
Ressalte-se que não conheço o trabalho do chef Canellas. Mas depois de tantas decepções com a casa — e peço a ele que, por favor, me desculpe —, não me interessa conhecer.
Sinto, no entanto, saudades da mesma história que seu Anacleto me contava a cada quinze dias. Sempre com orgulho e emoção. Daí minha homenagem (póstuma).
Como explicar essas atitudes? Não falo em nome de uma Psicologia do Consumidor. Falo por mim. Existe uma diferença entre uma pessoa que morreu por não se sentir mais útil e um restaurante que não morre — apesar de não ter mais paixão dentro de si?
O que está por trás do êxito (ou fracasso) de um empreendimento? O que está por trás da fidelidade dos clientes (bem atendidos ou não)? Em que momento devemos reconhecer a derrota e simplesmente “parar”? Passar o ponto.
Não vou responder. Não sei responder. Voltarei ao tema. Apenas chamaremos essa “incógnita” de Fator X. Sem um “I” na frente.