SAHLEBA SAD ALUBAF — Um desabafo

Em um exercício republicano — tomando as mesmas liberdades com a língua que nossa “Presidenta” —, tenho dito que sou “economisto”. Poderia — quem sabe baseado na quinta emenda da Constituição dos Estados Unidos? —, ficar calado. Mas minha história pessoal me delataria. Sem prêmios.

Por que começo essa nota desta maneira?

Lembro ter lido certa vez — creio que em um dos livros de Jon Elster, filósofo social norueguês —, que muitas vezes somos “avaliados” pelas profissões que exercemos (ou que dizemos exercer). A história que acredito lembrar ter lido em Elster – a quem não vou maltratar chamando de “marxista analítico” —, era a seguinte. Sempre que ia a uma reunião social e dizia, entre drinques, que era “Matemático”, seus interlocutores interjeitavam — “Ah… Que interessante!” —, e davam um jeito de se afastar discretamente; humildes e intimidados.

Elster, então, passou a mentir e alegar exercer profissões diferentes. Em minha lembrança, ele diz que a que mais sucesso lhe rendeu foi dizer que era professor de tênis no Club Méditerranée. E que isso não apenas lhe granjeava automaticamente a admiração de todos como também abria as portas para infindáveis diálogos (leves e descompromissados).

Ora, formado em Economia na década de 1980, também tive meus dias elsterianos. Sem emprego em um quadro de crise cambial, depressão, desengano político e em um ambiente quase hiper-inflacionário, ainda assim (volta e meia) encontrava tempo para ir a uma (rara) festa ou a algum encontro social. Nesses eventos, sempre que revelava minha formação, via refletido nos olhos de meus interlocutores, uma expressão que mesclava entusiasmo e cupidez:

— Ah, é? Que bom! Escuta… O que é que eu faço com meu dinheiro? — perguntavam.

Sempre segurei o impulso de mandar esses interlocutores enfiar seus tesouros onde um ex-presidente futuro — lembrem-se que estou na década de 1980! —, desejaria que enfiassem os processos contra ele. Mas depois de engolir em seco, destilava minha acidez e, quase invariavelmente respondia:

— Por que você não compra dólares?

E durante muito tempo isso funcionou. As pessoas quase sempre lucravam. O dólar era uma mercadoria escassa. A demanda era muito superior à oferta. Estávamos (o Brasil) inadimplentes ante o FMI. Havia restrições para tudo e limitações de aquisição para viagens ao exterior. Nossos carros (que eu nem tinha!) eram carroças e nossos cartões de crédito eram navalhas. Enfim, acho que éramos “pobres”. Ou antes, a sensação de “ser pobre” ficou gravada em minha memória. E seguiu a vida.

Um dia — já bem mais velho e no auge da Era Lula —, comprei um chocolate (em reais) na loja de Duty Free no aeroporto internacional do Rio de Janeiro. Paguei com uma nota de R$ 50,00 e, para meu espanto, escutei da moça da caixa:

— O senhor se incomodaria que eu lhe desse o troco em dólares?

Vertigem. Substantivo feminino.

  1. Med. Sensação de movimento oscilatório ou giratório do próprio corpo ou do entorno com relação ao corpo; tonteira, tontura, vágado.
  2. P.ext. Sensação de desfalecimento, desmaio ou fraqueza.

Março, 2016.

Espero o elevador com meu sobrinho para subir para casa. Modernos, ambos estamos de olhos fixos em nossos celulares — ele vendo sabe-se lá o quê e eu notícias da economia e da política. Não vejo uma babá se aproximar por trás trazendo o filho de um vizinho. Comento:

— O dólar subiu outra vez.

Meu sobrinho não me ouve. Já a babá (que eu ainda não tinha visto e cuja voz, chegando pelas costas, me assustou) responde com um tom alegre:

— Que bom! Eu tenho alguns guardados!

Vertigem, estava dizendo…

Reação da zelite ao constatar que a babá via com bons olhos um colapso macroeconômico vitimada pela ilusão monetária? Preconceito de um “douto” diante de um comentário [leviano?] de um leigo? Ou simplesmente perplexidade e incapacidade de compreender o que está acontecendo?

Quantas voltas que o mundo deu? Comparando o sofrimento da década perdida de 1980 — na qual consolidei minha “personalidade cidadã” —, com hoje… O que aconteceu? Andei dormindo? Por quanto tempo?

Lembro-me vagamente de um passado no Colégio Militar, do choque ao ingressar em um curso de Economia marxista, das sucessivas greves na Universidade, do movimento em prol da Anistia, do nascimento do PT, das Diretas Já, da decepção de não votar, da dificuldade de encontrar emprego, da desilusão, da angústia e, finalmente, da opção de seguir um caminho por falta de opções… E, de repente, estou aqui hoje.

Quantos anos dormi? Quantos anos sonhei com uma res publica que – independente de ideologias -, se pautasse por uma ética cidadã? E diante dos visíveis defeitos da ideia de “democracia”, quantas vezes parodiei a Hermione de Racine lamuriando: Je t’aimais inconstant[e]; qu’aurais-je fait fidèle? Que sacrifício não teria feito por uma República que não fosse vulgar: uma res puta? Mas até mesmo essa res puta — que supostamente seria de todos — não é tão assim…  Talvez, se fosse de todos, não houvesse problemas. O problema é que ela – ainda que nem sempre dos mesmos – é apenas dos semelhantes.

Mas por que isso deveria me incomodar? Afinal das contas, nunca fui carbonário. Sempre me considerei “conservador”. E sempre sofri com essa polarização maniqueísta que entende o conservadorismo como uma falha de caráter. Vamos, então, definir meu “conservadorismo”. Em uma frase: (meu) conservadorismo consiste em não acreditar que o ser humano seja humano. Ou por acreditar que toda a revolução é uma revolução de bichos até que os seres se tornem humanos.

E que não existe receita que crie “humanidade”.

Então, eu, conservador, repetia cabotinamente com Balzac: Je n’accuse pas les riches en faveur du peuple. L’homme est le même em haut, en bas, au milieu. Eu, conservador, sempre repudiei qualquer discurso ou ideologia com pretensões de monopolizar a indignação. E do clichê que a indignação só veste roupas vermelhas.

Sou, no entanto, de um tempo — ó Conselheiro Acácio —, em que os conservadores (desiludidos e desesperançados como Sísifos) se conformavam; e que os “progressistas” (otimistas e audaciosos como Ícaros), desejavam mudanças. E então, acho, fui dormir.

Acordando do sono de algumas décadas, hoje vejo os “progressistas” querendo “conservar” um governo corrupto e os “conservadores”, mudar os corruptos de lugar (como que em uma dança das cadeiras sem música e sem graça). Sem quaisquer outras alternativas. Como se o mundo fosse dividido entre aqueles que enaltecem o absurdo e aqueles que cospem nesses últimos.

E eu, pobre “conservador” — achincalhado como se a não adesão a comportamentos extremos fosse falha de caráter —volto a me perguntar onde foi que eu errei?

Então entendo por que talvez nunca tivesse sido progressista. E entendo, talvez, que deva isso à amoralidade da minha formação… Sim. A Economia moderna nasce amoral. A noção de que “vícios privados são benefícios públicos é famosa desde a publicação de A Fábula das Abelhas, por Bernard de Mandeville, no início do século XVIII. Mas — invertendo Mandeville — por que será que vícios públicos engendram tanta degeneração quando regados por benefícios privados?

Vícios públicos, benefícios privados. Eis que — da mesma forma que Marx colocou Hegel de cabeça para baixo —, a “civilização” brasileira — em uma possível Ode à Mandioca —, inverteu a lógica do Liberalismo (e nem por isso ganhou crédito!) Mas e daí?

Se eu sou “Liberal” ou “Neo-liberal”? Nunca me acreditei. Se sou qualquer outra coisa? Voltamos à “denúncia” de Elster: Matemático ou Professor de Tênis? Liberal ou Progressista? (Seja lá o que isso significa). De que vale endossar um “sistema de pensamento” (ou mesmo uma religião) se, por dentro, estamos podres?

A essa altura, o leitor (sobrevivente) — que já deve estar perplexo há algum tempo —deve estar se perguntando:

— E o que tem todo esse mimimi a ver com um blog de vinhos?

A resposta mais óbvia é: só me resta beber para esquecer. É certo que haja outras… Mas podem ter certeza: se eu aparecer em alguma festa e alguém me perguntar o que faço direi, sem mentir despudoradamente — “Sou enólogo”.

Talvez isso me torne uma figura mais popular… Talvez ninguém pergunte o que penso sobre “pedaladas” fora do âmbito do ciclismo.

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