Michel Rolland: El gurú del vino
Michel Rolland é uma invenção de Jonathan Nossiter. Antes de Mondovino, poucos se preocupavam com a resistência dos “terroiristas” contra a inexorabilidade da globalização. Após o documentário, o ato de beber vinhos virou uma manifestação ideológica.
Buenos Aires, 06 de setembro de 2013.
Não sei por onde ando. Meus pés caminham sozinhos: sabem o caminho… Flanando pelas ruas do centro de Buenos Aires, de repente descubro-me onde já tantas vezes me descobri (e onde tanto encontrei): em frente à colossal livraria El Ateneo, na Santa Fé.
Com a emoção que nunca esmorece de um adorador que adentra um templo, entro – caminhando lentamente -, deixando minhas mãos percorrerem capas e lombadas e detendo-me, aqui e ali, para pegar e/ou inspecionar algum livro mais interessante. De repente, tomo um susto: com o canto dos olhos percebo um homem simpático, de rosto sorridente e barba bem aparada, fitando-me franca e afetuosamente por cima de uma pilha de livros. Prendo a respiração: é Michel Rolland!
* * *
Volta e meia me perguntam por que diabos resolvi produzir vinhos com tantas variedades e marcas desta bebida disponíveis no mercado. (Trata-se de uma indagação quase retórica: o equivalente a perguntar por que escrevo estas linhas quando já existem tantos textos; impressos e na rede!) Essa mesma pergunta é quase sempre seguida por uma outra (mais ousada):
— Mas qual é o diferencial do seu vinho?
Produzindo no Valle de Uco, – Mendoza, Argentina -, mais de uma vez ensaiei uma resposta espirituosa:
— Nosso diferencial é não ter Michel Rolland como consultor. — brinco.
De fato, em frente aos vinhedos do Clos de los Siete — e dentro da propriedade da The Vines of Mendoza —, os dois hectares do Krasia May são uma extensão de terra cercada de Michel Rolland por todos os lados. Uma ilha. Michel Rolland parece ser ubíquo: está em todos os lados, na Argentina. Agora, de braços cruzados — reclinado no mostruário de livros —, ele me olha (quase com o olhar carinhoso que dirigimos aos amigos que não vemos há algum tempo).
Por um breve momento — como que em uma miragem — imagino que ele é real. Mas não é. Ainda assim, não resisto e pego a cópia de cima de uma bem arrumada pilha de livros: Michel Rolland: El gurú del vino.
Abro o livro e constato que o fora impresso em Mendoza para o Editorial Mirrol. Ano: 2013. Em letras bem miúdas, no interior, revela-se que foi escrito “com a colaboração de Isabelle Bunisset”. Tradução de Ramiro Benegas Serú.
Já no Prólogo, Enrique Chrabolowsky — autor de Vinos de Argentina e editor deste livro — coloca as seguintes palavras na boca de Rolland:
— Estaba cansado de leer y escuchar notícias y opiniones mías que nunca había dicho.
Adiante, na Introdução, é o próprio Rolland que escreve na primeira pessoa:
— Largo tempo rechacé que varios aspirantes escribieran mi historia. (…) Se dijeron tantas cosas de mí. Muchos ruídos y pocas verdades. Muchas polemicas y pocas honestidades, — lo essencial está siempre escamoteado —.
Segue-se uma promessa: contar o seu lado da história. Interessado, procuro o índice, ao final, e vejo o seguinte plano da obra:
Capítulo 1: El paisaje familiar
Capítulo 2: El vino en revoluciones: 1973-2001
Capítulo 3: El encuentro com Robert Parker
Capítulo 4: Jonathan Nossiter, el jansenista-altermundista y sus acólitos
Capítulo 5: Allá, lejos de Francia
Não penso duas vezes: o livro vai direto para a minha cesta junto com uma biografia de Antoní Gaudí.
* * *
Chego no Hotel e corro para o computador. Michel Rolland, le gourou du vin foi publicado na França em 04 de abril de 2012 em co-autoria com Isabelle Bunisset — Doutora em Literatura, professora na Universidade de Bordeaux e jornalista. Quem é a Doutora Bunisset e o que fez com que tenha sido ela a “aspirante” capaz de fazer Rolland mudar de ideia com respeito a contar sua história? Não sei se jamais saberei… Mas parece claro que quem escreveu o livro foi ela. Em um delírio nossiteriano, quase a imagino com um gravador na mão — ora no banco de trás do carro, ora correndo com passos de cachorrinho atrás de Rolland entre uma consultoria e outra —, recolhendo histórias como os pássaros que comiam as migalhas jogadas por João e Maria no conto dos Grimm.
De fato, não consigo ver nem planejamento e nem profundidade no texto. A paisagem familiar descreve, sem sobressaltos, a vida de um caipira francês que amava os Beatles e os Rolling Stones e que, mesmo querendo ser cantor de rock, terminou continuando o ofício da família — de vinhateiro. O capítulo 2 roça no tédio: descreve safra a safra (sobretudo no Pomérol) de 1973 a 2001 (às vezes detendo-se em uma ou outra de suas “descobertas” — como a da poda verde). Temo que, para um estudioso de viticultura ou de enologia seja um capítulo demasiado superficial. Para um leigo — mesmo que enófilo, em boa medida —, é simplesmente chato. Ou, no limite, incompreensível. Passo direto ao capítulo 5. Outra decepção: pouco mais do que uma dramatis personae resumindo (e homenageando) o elenco de indivíduos (ou de empresas) em mais de 20 países onde prestou (ou presta) consultoria.
O leitor ansioso deve estar imaginando que estou guardando o melhor para o final. E, de fato, estou! Mas – hélas! — os dois capítulos tão esperados também desapontam: o “encontro com Robert Parker” é narrado em 13 páginas insossas. Sobre Nossiter, a história narrada por Rolland é mais prolixa: o cineasta merece 24 páginas — quase o dobro! Mas o que ele diz é tão óbvio quanto um pleonasmo: que Nossiter é um radical que abusou de sua confiança e que o retratou como uma caricatura. Que Nossiter filmou uma manhã de sua vida — amostra insuficiente para lhe fazer justiça (ou mesmo traçar seu perfil com algum tipo de representatividade). Reconhece, no entanto, ter sido ingênuo ao conceder a entrevista…
O que dizer, como síntese, deste livro de 193 páginas que (pelo menos até agora) não teve a sorte de ser traduzido (ainda) para o Inglês (ou para o Português)?
Bem… Rolland tem uma excelente autoimagem! Se fossemos acreditar nele —, a enologia moderna poderia ser escrita em dois momentos: A.R. e D.R. Quase como se Alexander Pope precisasse renascer para reescrever as épicas e maravilhosas linhas que, alteradas, seriam:
Wine and Viticulture’s laws lay hid in night:
God said, “Let Rolland be!” and all was light.
Não estou entre os detratores de Rolland. Pelo menos não como enólogo. Ele tem, inegavelmente, uma trajetória admirável; digna até mesmo de inveja! E seus vinhos — dado que se possa creditar um vinho a uma pessoa (opinião que não endosso) — estão longe de ser óbvios e homogêneos. Mas faço, aqui, uma confissão pública: posso quase garantir que qualquer de seus vinhos é melhor do que seu livro…