A contribuição de Luíza Brunet para a Enologia
O passado às vezes volta como imagens imprecisas. Oníricas. Alucinógenas. Etílicas. (Existe diferença?) Imagens distorcidas pelo tempo. Pela memória. Pelas camadas de mentira com as quais cobrimos as histórias que contamos para nós mesmos. Não sei, portanto, se (ou em que medida) inventei tudo isso.
Não posso garantir se o que vou narrar foi “vivido” ou se é apenas imaginação… Se tivesse que confirmar a veracidade desses fatos, no entanto, dependeria de testemunhas que, provavelmente, prefeririam morrer a confessar que participaram desta conversa. Por isso nem me dou ao trabalho de expor nomes.
Mas, afinal, do que se trata? Que conversa foi essa? Uma “polêmica” sobre “o homem básico”… “Polêmica” no estilo de algumas matérias que saem (geralmente aos sábados) no Segundo Caderno de O Globo: artigos que criam, desenvolvem, inventariam prós e contras, sintetizam e finalizam um tema cultural “crucial” inventado pelo gerente de pauta. Uma “polêmica” que possivelmente nunca existiu e que já estava resolvida muito antes de o redator da matéria digitar “send”. Uma “polêmica” tão importante que não consegui achar referências a ela no Google.
Aos fatos.
Deixo minha memória vagar e ela pousa; mas não no busto de Palas Atena. Pousa na mesa de frios do restaurante Viena, no Rio Sul, de onde ela poderia observar discretamente os protagonistas. O Viena era o fórum não oficial da reunião dos alunos do Doutorado em Economia da UFRJ interessados em Epistemologia e Metodologia da Economia. Alunos que se reuniam em torno ao saudoso Isaac Kerstenetzky. O ano, com um pouco de sorte, seria 1990. Na época, nos encontrávamos para almoçar todas as sextas-feiras e éramos conhecidos como o Círculo do Vienna – uma pálida homenagem ao Wiener Kreiss que, na virada do século XX, tinha abalado o mundo da Filosofia da Ciência.
Em algum momento — ou por falta de assunto ou para cobrir o silêncio constrangedor de alguma discordância insuavizável —, alguém trouxe à mesa um debate sobre o “homem básico”. Debate sacado de uma polêmica de jornal (ou de revista) onde participavam diversas celebridades, entre as quais Luiza Brunet. Não consegui exumar esse debate. Mas tudo girava em torno de entrevistas com mulheres famosas onde elas revelavam seus critérios para escolher um homem “básico”. E – motivo de gozação -, um de nossos amigos julgou-se merecedor do título. Isso porque Luiza Brunet havia declarado que, para ela, o “homem básico” deveria ter características tais como ser íntegro, ter senso de humor e gostar de ópera — não me lembro de todos os itens —, e ele acreditava ter todas elas.
Adiante, outra entrevistada (revisionista) acusou la Brunet de estar confundindo “homem básico” com “homem ideal”. Não lembro onde esta discussão parou. Muito menos entendo porque isso ficou na minha memória… Por que diabos, então, discutir “homem básico” em uma história de vinhos?
Sem dúvida, esse assunto deve ter brotado de algum tipo de desconforto; de uma “crise”. Em algum ponto de meu inconsciente abriu-se uma dissonância. Fato: no último post — Wine and Design —; comecei um decálogo sobre “o Bom Vinho”. Mas se o “homem básico” confunde-se com o “homem ideal” — como, então, pensar a categoria “vinhos”!? Um “Bom Vinho” é um vinho “aceitável” ou um “vinho excepcional”? Ou, em outras palavras, um “bom vinho” é “apenas” um companheiro de mesa para o dia a dia ou uma fantasia de amor; platônico e inatingível? Bref: um “Bom Vinho” é um vinho “básico” ou um vinho “melhor” do que isso? “Superior” (ou ”ideal”)?
Em outros termos: o que queremos dizer quando falamos da “qualidade” de um vinho? O que significa “Bom” quando nos referimos a um “Bom Vinho”?
Pergunta crucial. Trata-se, na verdade, da primeira pergunta dirigida aos alunos do curso de Produção de Vinhos da Universidade de Davis, Califórnia, pela professora Linda Bisson. Logo de início, ela esclarece que qualquer percepção de qualidade é subjetiva: que há fatores fisiológicos e psicológicos envolvidos na questão. Fisiológicos: nem todos somos dotados da mesma capacidade de percepção de gostos e de odores. Embora a capacidade analítica possa ser desenvolvida por (quase) qualquer um, cada indivíduo tem um limiar de sensibilidade diferente a certos estímulos (aromas, por exemplo). Psicológicos: o “gosto” de qualquer indivíduo é fortemente influenciado por sua história de vida; por suas experiências. Diversos estudos têm sido feitos, por exemplo, para comprovar o papel das expectativas nas degustações às cegas — isto é, nas degustações onde as informações sobre os vinhos provados são limitadas. Uma das conclusões mais frequentes é que — dados dois vinhos idênticos colocados em taças idênticas —, se é passada a informação de que o vinho de uma taça é caro e que o outro é barato, aqueles que avaliam esses vinhos (às cegas) “reconhecerão” o primeiro como “melhor” e o segundo como “pior”.
Outra abordagem possível para o debate sobre a “qualidade” de um vinho envolveria a seguinte discussão: quando se fala de “qualidades”, se estaria privilegiando a ausência de fatores negativos ou a presença de fatores positivos? Talvez por esse ângulo nos aproximemos mais do debate “homem básico” x “homem ideal”…
Nesse sentido, o “vinho básico” seria aquele que simplesmente não tem “defeitos”; que é correto. Mas seria esse “vinho básico” um “Bom Vinho”? Pedantismo à parte, no entanto, a esmagadora maioria dos vinhos tem algum defeito. E logo, a pergunta que precisaria ser feita em seguida seria: em que limiar deveriam ser colocados esses defeitos? Ou seja, quantos “defeitos” deveriam ser identificados para que um vinho “superior” se transformasse em apenas “bom”?
Exposto desta maneira, o raciocínio acima nos levará rapidamente a lugar nenhum! Melhor definindo, portanto: um “vinho básico” não seria então tão-somente um vinho sem defeitos; mas também um vinho sem qualidades!
Estamos, então, prontos para o próximo questionamento: seria um “Bom Vinho” aquele que se aproximasse de qualidades (pré)-definidas? Da “tipicidade” de um estilo, por exemplo? Assim, um Beaujolais Nouveau seria um vinho “básico”. Porém, um Beaujolais Moulin-à-Vent seria, indiscutivelmente, “superior”. É evidente que só se poderá ter uma ideia clara da “qualidade” de cada um desses vinhos depois de se provar uma quantidade razoável de “vinhos básicos” e de “vinhos superiores”. Mas disso não se poderá fugir em nenhuma hipótese…
Finalmente, poderíamos entender “qualidade” como “complexidade”. E “complexidade” pode ser entendida, mais profundamente, como “complexidade lateral” ou como “complexidade vertical”. Fala-se de “complexidade lateral” quando diversos aromas despontam na taça ao mesmo tempo. Fala-se de “complexidade vertical” quando o vinho vai mudando de característica na medida que o tempo passa e que os aromas evoluem (e sucedem-se na taça). Lembro-me, por exemplo, de um Pera Manca que, ao ser aberto apresentava um estranho aroma de massa de tomate que se transformou, entre duas ou três horas depois, em um passeio no bosque, com folhas secas e frutas vermelhas e negras formando um bouquet apaixonante.
Em suma: não faz mais sentido, em um mercado tão diversificado e competitivo, falar de “bom” vinho versus “mau” vinho. “Maus” vinhos são — felizmente! — uma espécie em extinção. A esmagadora maioria dos vinhos que encontram seus caminhos para as prateleiras dos supermercados ou das lojas especializadas são “bons”. Mas “bons” definidos como “ausência de defeitos”, como “ausência de qualidades” ou como “ausência de personalidade”.
Em apertada síntese: para mim — como possivelmente para Luíza Brunet —, não existe vinho (ou homem) “básico”. Ou, se existe, não interessa!
Volto, portanto, ao decálogo de Dieter Rams e à paródia que ele originou: quando eu falar de “Bom Vinho” entenda-se, portanto, “Vinho Superior” — ou seja, aquele que merece ser lembrado; e não apenas “tomado”.
Agradeço a Emily Crowley por ceder a ilustração de capa deste post. Créditos: Blog e website.
O que já foi dito: