The Flying Wine Drinker: Memórias VII – Shiraz
Encaixou meticulosamente a piteira de plástico na mangueira do narguilé. Levou-a com calma à boca e aspirou com intensidade. Fitou o teto exoticamente decorado como se o tempo não existisse e, com expressão sonhadora, foi deixando, pouco a pouco, fluir pela boca uma fumaçacom cheiro adocicado de menta e de laranja. Em seguida, com uma piscadela, sentenciou, com certo cinismo, em um inglês com sotaque carregado:
— Os Iranianos são muçulmanos que querem ir para o Inferno…
Senti como se o gelo tivesse quebrado. Lembrei-me, em seguida, do texto clássico de Clifford Geerz, antropólogo americano. Ao ser surpreendido assistindo uma briga (ilegal) de galos, em Bali, perplexo, fugira com os locais. Passou, então, finalmente a ser “aceito” pela sociedade que antes o ignorava como se ele fosse um “invisível”.
Shiraz, 16 Mehr do ano de 1394 no calendário Jaalali de Omar Khayyam. Ou teriam se passado oito dias do mês de Outubro do ano de 2015 de Nosso Senhor; uma quinta-feira?
Estamos em um pé-sujo fumando shisha, tomando chá e beliscando petiscos desconhecidos (de cujos sabores não saberia dizer se gostava ou não). Como que saindo de um transe, o armênio sorriu. Piscou outra vez o olho — um tique? —, e perguntou (entre rindo e sussurrando) com um jeito afetadamente intimista:
— E então? Vocês querem vinho?
Olhei para meu amigo e companheiro de viagem com a respiração presa sem saber o que dizer.
De repente, duas dezenas de aiatollahs de mantos negros e turbantes brancos caem do teto como que marionetes manipuladas por cruzetas oniscientes que – em uma dança macabra -, brandem cimitarras imaculadamente prateadas em nossa direção. Em um átimo vejo-me em uma prisão turca do estilo de Expresso da Meia Noite pedindo cigarros (que não fumo) s’il vous plaît a algum visitante aleatório que porventura me localize. O Grito, de Edvard Munch, olha para mim em profunda agonia. No horizonte, vejo os Quatro Cavaleiros do Apocalipse em um galope desesperado como que fugindo de um cogumelo luminoso (ou seria um turbante?) que cresce por trás deles. Em outro devaneio vejo o corpo de Saddam Hussein balançando na forca. Só que… esse cara sou eu!
E antes que pudesse dizer qualquer coisa, escuto – com um som quase mórbido e distorcido -, a voz sorridente de meu amigo dizendo…
— Mas é claro!
O armênio faz sinal para o garçom que se aproxima da mesa. Puxa-o, então, pelo ombro até que possa sussurrar algo, em Farsi, em seu ouvido. O garçom sorri com ar de cumplicidade. Mas uma sombra de dúvida mancha seus olhos quando olha para nós. Ainda assim, retira-se com presteza. E em pouco menos de cinco minutos – ou seria uma eternidade? – reaparece com um saco de papel pardo onde, dentro, se vislumbra algo parecido com uma garrafa PET de água mineral. Dentro desta garrafa, um autêntico vinho de Shiraz.
O garçom, então — conferindo se está sendo observado por mais alguém —, entrega a garrafa a nosso amigo armênio e coloca os copos de vidro grosso que vinham (higienicamente) presos entre seus dedos sobre a mesa. Não houve prova e tampouco ousou enchê-los. Afastou-se rapidamente (como um ladrão de uma cena de crime).
No ambiente escuro e esfumaçado vejo-me com uma “taça” do precioso néctar em minha mão. E vejo olhos curiosos que me fitam. Não dá para enxergar muito, mas o que vislumbro é um líquido com cor lembrando o mogno e – abusando da luminosidade possível -, bordas alaranjadas. Peço uma vela e dão-me a luz de um celular. Por meio desta posso distinguir partículas em suspensão no líquido. Sinto um aperto no coração.
Levo o vinho ao nariz. Um aroma sujo, algo similar a suor de cavalo, invade minhas narinas. Em seguida, notas de oxidação e, com um pouco de boa vontade, distantes aromas de compota de ameixas escuras e romãs começam a aparecer até que suprimidas por um cheiro terroso de barro (ou de argila) que passa a predominar.
Suspiro. Peço auxílio a meu amigo imaginário, Omar Khayyam. Diante de sua apatia enfureço-me: “Você teria escrito o Rubaiyat se tivesse tomado isso!?”
Sem saber como interpretar seu reiterado silêncio, tomo coragem e resolvo provar o líquido. Seco. Ácido. Bem ácido. O calor na boca revela um (altíssimo) teor alcoólico improvável. Talvez se tratasse de vinho fortificado com vodka ou algum tipo de aguardente depois de pronto. O gosto terroso persiste. Os taninos verdes. A oxidação, evidente. Um incômodo desequilíbrio entre o jovem demais e o velho que se estragou. A maldição de uma promessa de juventude que não se concretizou; que não pôde amadurecer corretamente. E que decaiu sem ter nunca chegado a seu apogeu…
Sem traços de barrica. Sem conservantes evidentes. Tout court: estragado. O que mais dizer?
Meu reflexo “profissional” é cuspir. Mas, se cuspo, vão-se as regras de hospitalidade. Olho para Khayyam. Khayaam olha para mim com olhos opacos. Apenas sorrio. E o armênio:
— Bom!?
— Interessante. —, respondo fugindo à pergunta.
— Meu primo faz em casa. Uvas daqui. Uvas velhas. As uvas mais antigas do mundo! — exagera — Feito e guardado em casa, em jarras de barro. É do ano passado e já está quase acabando. Vocês deram sorte!
E continua com muito orgulho explicando que se produz muita bebida — vinho, vodka —, no Irã. E que o consumo é bastante alto. Mas que esse consumo é privado. Só entre amigos. E levantou o copo para brindar, bebendo o vinho em um gole como um shot de whisky de cowboy.
— Os Iranianos são muçulmanos que querem ir para o Inferno… — repetiu.
— E os árabes? — ouso perguntar (talvez abusando da recente amizade).
— Os árabes são judeus sem senso de humor. — cortou irônico.
Fico sem saber o que dizer. Olho de novo para Omar Khayyam: eu, turista e transgressor em um país distante. E Khayyam, com um esgar, apenas parafraseia seus versos do Rubayiat:
— Vinho Infiel! Roubou sua honra… — E cai na gargalhada contente com sua hipálage e desdenhoso de meus escrúpulos.
— Mas, afinal, você se sente culpado porque está tomando o vinho ou porque o vinho é ruim? — sentencia.
Ignorante de meu diálogo com Khayyam, o armênio apenas olha para mim, sorridente, e cita o Rubaiyat:
— Seja feliz agora. Esse momento é a sua vida.
E, levantando o copo, brinda triunfante:
— Salâmati!